segunda-feira, 12 de abril de 2010

Platão, ou como filosofar em cadeiras desconfortáveis

Platão cansara-se de escrever. Estava com a bunda doída de tanto ficar sentado naquela cadeira desconfortável, típica da Antiguidade. Levemos em conta que conforto é um ideal inventado apenas no início da 2ª Revolução Industrial, e colocado em prática apenas no século XX, por grandes promovedores do bem-estar humano, como a Giroflex. Levemos em conta que Victor Hugo escrevia em pé, à beira de uma escrivaninha alta, dispensando cadeiras e varizes. Levemos em conta a reflexão de Flaubert, citada por Nietzsche em seu Crepúsculo...: “Só se pode pensar e escrever sentado.”
“Ah, porra!!!!”, pensou Platão (parecerá verossímil que a mesma mente que concebeu o mito da caverna – ou que concebeu o próprio personagem Sócrates – tenha vociferado um palavrão como este?). “Termino essa droga amanhã!”. Faltava a conclusão do Livro IX daquilo que mais tarde seria conhecido como o texto da República, mas o cansaço realmente não o deixaria continuar. Levantou-se da cadeira, organizou displicentemente os papéis cheios de diálogos, coçou a testa e a barba, dirigiu-se ao quarto, tirou a roupa, deitou-se ao lado da mulher e dormiu como os filósofos dormem: com os olhos abertos, com lucidez.
Era um homem de ombros significativamente largos, o que justificava o apelido imortalizado. Era alto e barbudo e sério, e estes atributos o caracterizavam, à época, como um pensador por excelência: altura (não existem pensadores baixinhos – Toulouse-Lautrec era pintor); barba (símbolo universal da des-preocupação em relação à aparência física e ao mundo material); e seriedade (se não fosse uma pessoa séria, seria filósofo? Os bobos da corte medievais eram filósofos? Eu sou filósofo?).
Naquela noite, entretanto, aconteceu algo que não costumava acontecer: sonhou. E sonhou com seu personagem predileto: Sócrates. E sonhou que ele não morreria triunfalmente no Fédon, ingerindo cicuta, mas sim seria crucificado (obedecendo a um cruel costume do povo que o condenaria) numa região distante de Atenas e esta passagem constaria em outra obra que não a sua, talvez numa obra escrita em grego e aramaico, composta por muitos livros e escrita por muitas pessoas, talvez escrita por Deus. Platão, no sonho, imaginava-se análogo a Deus, pois podia compartilhar seus personagens com Ele, e até mesmo sentia-se no dever de fazê-lo. No final do sonho (todo sonho é invenção, mas nunca ficção), surgiam imagens do futuro, no qual Sócrates era venerado e adorado com outro nome, em pontos distantes da Terra, e sua mensagem, deturpada até o extremo pela filosofia dos outros e pela repetição, era propagada, imposta e até mesmo refutada. A cruz, e não a coruja, tornar-se-ia seu totem universal.
Acordou no meio da noite, sentindo-se humano e suado. Fazia calor e sonhara. Sonhar com uma coisa é estar indissociavelmente ligado a ela. Sentiu que o livro que planejava escrever em breve, o Fédon, estava maduro o suficiente em sua cabeça para poder ser escrito. Mas manteria a ideia original, a da cicuta. Sentiu que as diferenças circunstanciais impostas pelo sonho eram típicas de quem escrevia demais, de quem lia demais e de quem era grego demais.
Mas antes de começar o Fédon, teria que concluir a República, teria que escrever muitas outras coisas, teria que viver os dias úteis, os fins de semana e os feriados, teria que almoçar, comer, fazer amor com sua mulher (há tempos não o fazia, pois a produção intelectual exauria-lhe as forças e os desejos), e muito provavelmente teria que pensar demais. “Ah, porra!”. Dormiu de novo.
Acordou no outro dia e continuou a escrever a República, como um condenado, e ao terminar, alguns dias depois, chamou a esposa no meio da noite e fizeram amor como nunca haviam feito antes.

2 comentários:

  1. Sabes, fiquei preocupada!
    Será que não sou uma "pensadora"?!!!! Afinal, vc tá afirmando que não existem pensadores baixinhos, exceto os listados.....
    Até prova em contrário, eu sou mais uma do rol....dos baixinhos!!!!!

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  2. iiihhh....
    na verdade, não existem mesmo pelo que vc cita. carambas!!!!

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